“A gente só vira gente quando temos o
documento, sem documento a gente não é nada”. Foi com essa
definição sobre a importância do documento de registro de nascimento, que dona
Cleonice nos contou sobre a sua história e a luta para garantir os direitos de
seus dois filhos. Nascida em Aquiraz, ela veio morar em Fortaleza aos 15 anos
de idade. Aqui conheceu o seu Francisco um homem já adulto, que havia chegado
em Fortaleza em 1983 vindo de Uruburetema-CE para trabalhar. Pai de cinco
filhos de casamentos anteriores, foi com seu Francisco que dona Cleonice se
apegou e começou a viver uma vida em comum. Juntos, Cleonice e Francisco
moraram em vários bairros de Fortaleza entre eles Tancredo Neves, Jardim União,
Genibaú e Planalto Airton Senna. E numa dessas mudanças dona Cleonice perdeu
seus documentos.
Na busca para retirar uma segunda via
ela descobre que o Cartório onde poderia resolver seu problema facilmente,
havia pegado fogo e todos os registros haviam se perdido. Nesse período ela
engravida de seu primeiro filho. Mesmo com dificuldade de acesso ao sistema de
saúde por conta da falta de documentos, dona Cleonice disse que resolvia
“conversando”. Mas a gravidez de Francisco Alisson, o nome escolhido para o
bebê não vinga. Aos seis meses foi constatado pelos médicos que ele é
natimorto. Seu Francisco interrompe a conversa para complementar: Quando
a gente chegou no hospital, eu levava meus documentos e dizia os dados dela:
nome, data de nascimento, mas eu dizia que ela se chamava Juliana e agora toda
a comunidade a conhece assim, como Juliana – nos contou rindo. Na segunda
gravidez, nasce Francisco Junior e na terceira Francisco Ítalo. Sem os
documentos da dona Cleonice, seu Francisco pai, não consegue registrar as
crianças. Sem autorização dos cartórios, ele vai tentando juntos aos locais que
lhe indicam para iniciar o processo, mas em vão. Até que desistiram: “Eu
tentei de todo jeito, mas eles não nos ajudaram. Falamos com o pessoal dos
cartórios, do Conselho Tutelar, até com um candidato a deputado que prometeu
nos ajudar e nada. Desistimos, porque o pobre para o rico só serve para
trabalhar”.
Eles fixaram residência na comunidade
do Palmeiras em Messejana, situada na Regional VI, uma das áreas mais pobres de
Fortaleza e onde cerca de 297 crianças não tiveram acesso ao documento de
registro de nascimento. 17 anos se passaram e sem documentos, Francisco
Junior e Francisco Ítalo tiveram suas vidas comprometidas. Nenhum dos meninos
teve seu direitos básicos garantidos: não puderam se matricular numa unidade de
ensino (mesmo sendo contra a lei negar acesso de uma criança a escola pública),
não tiveram acesso a unidade de saúde e não puderam ter acesso aos benefícios
do governo como o Bolsa Família.
Nesse espaço de completa ociosidade,
os meninos tomaram rumos diferente em suas vidas: Francisco Junior entre os 16
a 17 anos, se envolve em ações de conflito com a lei e foi preso. Seu pai
aborrecido com o ato do filho se recusou a ajuda-lo: “Não dou cobertura
a safado. Não fui nenhuma vez ver ele”. Dona Cleonice tomou atitude
diferente: “Fui com ele em todos os momentos. Cheguei na delegacia e me informaram
que eu tinha que trazer o documento dele, mas eu não tinha, eu não sabia o que
fazer. Mas eu fiz tudo por ele, tudo o que eu podia”. Francisco Ítalo vai
trabalhar com o pai numa carroça como reciclador de lixo. “Ele não me dá
trabalho. Ele gosta de trabalhar e não gosta de se misturar com gente ruim” -
fala o pai com certo orgulho. Caracterizado como exploração do trabalho
infantil os pais são denunciados ao Conselho Tutelar pela infração. O Conselho
Tutelar (órgão responsável para garantir os direito da criança e do
adolescente) foi investigar a denúncia, porém só fez orientações a dona
Cleonice, sem ações de encaminhamentos práticos.
E é nesse contexto que o Projeto
Redes de Proteção da Visão Mundial encontra essa família e que a luta pelo registro
de dona Cleonice e seus filhos é reiniciado. Com o apoio, dona Cleonice
acreditou que as coisas agora seriam diferentes. Mas tanto o projeto Redes como
a família sabiam que não seria um caminho fácil. Para resolver a questão do
registro das crianças, o de dona Cleonice teria que ser resolvido. Após
consultas junto aos cartórios de Fortaleza, a segunda via do registro dessa
senhora foi finalmente emitido. Em posse do mesmo, dona Cleonice teve acesso
pela primeira vez a sua carteira de identidade, CPF (Cadastro de Pessoa Física)
e Título de Eleitor.
Mas a luta estava apenas começando.
Com o apoio direto do Projeto Redes, finalmente Francisco ítalo foi retirado do
trabalho infantil e encaminhado para a escola, onde além das aulas normais, tem
acompanhamento de reforço escolar e aulas socioeducativas de capoeira. Enquanto
isso, o Projeto juntamente com a família foi a luta pelo registro dos meninos.
Em contato com o Hospital onde as crianças nasceram, os registros que
comprovariam o fato havia sido perdidos pela unidade de saúde. Por conta disso,
o Ministério Público foi acionado para que garantisse os direitos desses agora
adolescentes a tanto tempo negligenciados. Depois de uma longa batalha
finalmente os registros de Francisco Junior e Francisco Ítalo é emitido. A
sensação é de alegria.
Pergunto a dona Cleonice o que teria
sido diferente se os registros tivessem ocorrido quando os meninos eram
crianças e ela me responde: “Tudo seria diferente. Se eles tivessem tido o
documento, eles teriam ido para escola mais cedo, teriam saúde e o bolsa
família.” Pergunto pelo Francisco Junior: “Ele não mora mais
aqui conosco. Aos 17 anos conheceu uma moça lá no Genibaú de 15 anos e se
juntou (casou) com ela. Ele não dá mais trabalho, tá mudando com o casamento.
Quando vem aqui em casa ela vem junto com ele."
Da esquerda para direita: Facilitadora de proteção,
Dona Cleonice, Seu Francisco, membro da WVC, Manoel - membro da CPA.
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